Silicon Valley mexicano: Impactos socioambientais, digitais e do colonialismo digital e as resistências por uma vida digna
Por Jes Ciacci y Sofía Enciso . El Salto, Jalisco, MÉXICO.
Ilustração: Giovanna Joo
AR
Conte-me o que aconteceu, vamos, conte-me Santiago,
quando eras fonte de vida para meus antepassados.
Quero proteger-te
como defendo minha família,
com este rap de guerra
com este salto de vida.
Santiago, do artista de rap mexicano Skool 77
Para começar...
El Salto, em Jalisco, na região central do México, é a cidade-sede do município de mesmo nome. Faz parte da zona metropolitana de Guadalajara e é considerada uma cidade industrial. Seu nome tem origem na cachoeira de 18 metros de altura que o rio Santiago tinha nessa região. De um lado, El Salto; do outro, Juanacatlán. Durante o século XIX, dois grandes projetos foram erguidos nesta “Niágara mexicana”: a primeira hidrelétrica que abasteceu a cidade de Guadalajara e a fábrica têxtil com maior volume de produção e número de funcionários do estado. Hoje, ao longo dos aproximadamente 146 km do curso d’água, estão instaladas 675 empresas, 71 delas transnacionais.
A região é cercada por montanhas e encostas profundas, o Rio Santiago e o Lago de Chapala, o maior do México. Essas características geográficas e o amplo conhecimento territorial das populações nativas permitiram que, na época da conquista espanhola, funcionassem como barreiras naturais. Uma lenda diz que a invasão das terras dessas populações foi possível devido a uma seca. De acordo com estudos e artigos jornalísticos, a primeira grande crise hídrica do lago ocorreu em 1953.
A mesma geografia que outrora protegeu os indígenas Coca também influenciou o desenvolvimento industrial da região: a presença do Rio Santiago e a proximidade do Lago de Chapala proporcionaram uma disponibilidade de água quase única no país:
Foi feita uma pesquisa nos arquivos do território sobre a tomada de decisões (...) do período de 1890 até hoje, começando pela primeira barragem de, 1896, e mais hidrelétricas, a construção das ferrovias (...) todo o conjunto de fazendas que havia no território. Começamos a ver que o processo de industrialização não é recente, que as ‘zonas industriais’ da região são renovadas constantemente e também estão se expandindo.
É o que relata um dos membros da Un Salto de Vida (USDV), coletivo socioambiental de Jalisco, integrado por habitantes de comunidades afetadas pela poluição industrial e pelas políticas de desenvolvimento, da bacia do rio Santiago, especialmente do município de El Salto e seus arredores.


O processo de “desenvolvimento” da região tem, portanto, uma longa trajetória. No início do século XX, começou a se configurar o grande corredor industrial Guadalajara-El Salto, que atraiu indústrias de diversos ramos: desde as alimentícias até as químicas e metalúrgicas e, mais recentemente, as eletrônicas. A expansão foi favorecida tanto pela proximidade com Guadalajara quanto pela infraestrutura ferroviária para o transporte de carga.
A industrialização acelerou com a chegada de empresas nacionais e estrangeiras que aproveitaram as vantagens competitivas do território e sua alta conectividade terrestre, ferroviária e aérea. Com o tempo, a área passou a ser conhecida como o “Vale do Silício mexicano”, impulsionada por um setor eletrônico que compete em produção com países como China, Bangladesh, Malásia e Cingapura.
Nos últimos anos, esse impulso tecnológico foi reforçado pelo aumento do investimento estrangeiro direto, especialmente por meio de iniciativas como o Plano México1 (2025), que busca posicionar o país como um nó estratégico do nearshoring 2 global. A aceleração veio acompanhada de narrativas de “modernização” promovidas por diferentes níveis do governo. Assim, El Salto se apresenta como um dos territórios mais bem posicionados para receber relocalizações da manufatura asiática.
Localmente, as promessas de modernização e desenvolvimento são executadas com devastação ambiental, graves deficiências na saúde pública e violação sistemática dos direitos humanos. Diante desse panorama, há cerca de 20 anos nasceu o coletivo Un Salto de Vida como uma resposta para a defesa do território a partir da raiva organizada, articulando estratégias de resistência popular, luta política e restauração ambiental.
Este artigo percorre o processo histórico que levou à formação de El Salto como “zona de sacrifício”, examina os efeitos da expansão da indústria tecnológica, aponta os possíveis impactos do Plano México na região e compartilha as ações de defesa comunitária, além de pesquisas territoriais sustentadas por Un Salto de Vida.
Chignahuapan, a potência de nove rios
A poluição do rio Santiago, resultado de descargas industriais e municipais não regulamentadas, tornou-se o símbolo mais visível da devastação ambiental. Peixes mortos, febres infantis recorrentes e altos índices de câncer e insuficiência renal são algumas das consequências desse processo (Entrevista USDV, 2025a). A situação atual de contaminação da região responde a um plano de gestão territorial que historicamente considerava o território “vazio”.
Com a colonização espanhola, o rio foi rebatizado de “Santiago” em homenagem ao apóstolo. A essa usurpação simbólica somou-se a supressão da cosmovisão indígena, que considerava o rio um ser sagrado. No início do século XIX, já existiam grandes fazendas concentradas nas mãos de famílias que ainda hoje estão ligadas a grupos de poder econômico e político. Anos depois, um engenho de açúcar e uma usina hidrelétrica foram instalados. Essa usina fornecia a energia necessária para o funcionamento de um moinho para a produção de farinha. Foi assim que o rio se inseriu nas novas formas de organização política e econômica como eixo de um “desenvolvimento” industrial extrativista. O crescimento industrial da região ocorreu gradualmente até que, na década de 1960, foi inaugurado o primeiro corredor industrial, no qual se instalaram empresas eletrônicas de renome internacional, como IBM e Hitachi.
O Rio Santiago é o segundo mais importante do Pacífico mexicano e atravessa seis estados: Aguascalientes, Durango, Guanajuato, Jalisco, Nayarit e Zacatecas. Dada sua extensão, em tempos pré-hispânicos, recebeu diferentes nomes. No idioma nahuatl, era conhecido como Tzahualhuiquani, que significa “aquele que faz espuma” ou “aquele que se agita”. Na tradição oral, Coca recebeu diferentes nomes, talvez por estar ligado a uma cosmovisão fluida e simbólica de cada território que atravessava. Para os grupos que habitavam a região de El Salto, o rio era conhecido como Chignahuapan, que significa “a potência de nove rios”. Era considerado um ser vivo com vontade, caráter e energia. Suas águas irrigavam plantações e eram também um elemento essencial das práticas espirituais e da identidade coletiva. Ainda hoje, para os membros da Un Salto de Vida, o rio é parte fundamental da identidade e cultura regional. Sua contaminação prejudica esses laços: “Não é apenas a doença do rio, é também nossa doença como povo, porque nossas avós nos ensinaram a respeitar a água como se fosse nossa mãe”. (Entrevista USDV, 2025a).À relação cultural, espiritual e simbólica entre suas águas e seus povos, somam-se as práticas cotidianas da vida camponesa e pesqueira. O rio era considerado um bem coletivo e uma entidade com a qual os seres humanos dialogavam. Relatos orais dão conta de que mergulhavam as mãos ou os pés no rio antes de uma semeadura importante, como forma de pedir permissão ao espírito da água. Algumas dessas heranças históricas ainda são lembradas hoje: “O rio não é mais rio, agora é um esgoto. Mas isso também dói na alma, porque era lá que brincávamos, era lá que plantávamos, era lá que éramos batizados”. (Entrevista USDV, 2025a)
As (mal) chamadas zonas de sacrifício
Para chegar a El Salto, atravessam-se grandes rodovias e áreas urbanas. A avenida principal da comunidade também é uma rodovia. A apenas uma rua de distância, no interior da vila, vivem-se tempos e formas semelhantes aos de qualquer outra vila. O ar que se respira, no entanto, não parece com o de outra vila. Cheira a laranja e ovo podres, osso queimado, amêndoas amargas. Esses “odores ofensivos”, como os descreve um fanzine do coletivo Un Salto de Vida, são a expressão de um poluente diferente.

O conceito de “zonas de sacrifício” não é novo. Foi usado inicialmente durante a Guerra Fria para se referir a regiões contaminadas pela radiação e pela mineração de urânio. No entanto, durante as décadas de 1980 e 1990, ou seja, durante o auge do período neoliberal, vários movimentos de justiça ambiental retomaram o conceito para denunciar o racismo que está inscrito em sua criação. Essa lógica permitiu tecer, de forma espacial, a proximidade de certos grupos a pontos onde se concentra a contaminação do solo, do ar e da água como consequência de um modelo de desenvolvimento desigual e não como uma simples coincidência. (Tornel e Montaño 2024)
As zonas de sacrifício são regiões nas quais as populações humanas, não humanas e seus ecossistemas são considerados descartáveis. Nelas, as formas de vida impostas são consequências estruturais de uma ordem que prioriza a acumulação por desapropriação, naturalizando a produção de descartáveis humanos e territoriais. São zonas cuja razão de ser é servir de suporte ao capitalismo extrativo que vê paisagens, plantas, animais e outros elementos como “recursos” disponíveis para sua exploração. Zonas em que são impostos modos de vida únicos que respondem a esse modelo de desenvolvimento hegemônico. Essa forma de pensar, com raízes profundamente coloniais, considera essas zonas como “vazias”, “subdesenvolvidas” ou “primitivas”, o que serve como justificativa para impor processos de desapropriação, contaminação e destruição ambiental.
Em um capítulo do podcast Humo (2025), Carlos Tornel fala do “capitalismo autofágico” que “está se devorando a si mesmo, proliferando para outros territórios que antes não eram considerados zonas de sacrifício, mas que hoje são necessários, porque o modelo tem que continuar crescendo, tem que continuar devorando”. Às populações afrodescendentes, indígenas e camponesas que habitavam essas “regiões vazias”, somam-se as populações empobrecidas das grandes cidades, não apenas nos países do mundo maioritário, mas também nos países centrais da Europa e nos Estados Unidos. À medida que o capitalismo se expande, torna-se mais dependente da automação e da extração do que o capital chama de “recursos”, deixando de lado as pessoas, que se tornam “população excedente”.
No caso de El Salto, as manifestações mais evidentes dessa expropriação são vistas na deterioração da saúde ambiental da comunidade, indispensável para “sustentar” as necessidades da indústria e economia do país. Como afirma Lopes de Souza (2020), com uma perspectiva crítica latino-americana, a noção de zona de sacrifício permite visibilizar como a maioria do mundo tem sido sistematicamente oferecida no altar do desenvolvimento industrial e tecnológico. Não se trata apenas de danos colaterais, mas de um planejamento deliberado:
...é planejado em nível federal até internacional com todo esse movimento que a indústria faz sobre o território como um território vazio, um território que contém mão de obra, não contém pessoas (...) nem contém cidadãos porque não há direitos e não há responsabilidades, não há Estado, não há atenção ao cidadão. Não existem cidadãos, existem pessoas transformadas em mão de obra... [o que está acontecendo em El Salto] tem a ver com todo um processo de tomada de decisões, inclusive do outro lado do mundo. (Entrevista USDV, 2025a)
Nessas áreas, a violência se manifesta de formas diferentes, afetando especialmente o meio ambiente, a saúde e os modos de vida. Em El Salto, soma-se à anterior a violência direta que vem da militarização, do crime organizado, da criminalização da organização social e da negligência governamental:
Se continuarmos pensando com essa lógica, de que somos lugares sacrificáveis, que não importa se morre uma pessoa ou se morrem 100, não importa se é o (município) com o maior número de feminicídios, o segundo com o maior número de desaparecidos, que o necrotério forense fica em nosso lugar... já está tudo aqui, para que vamos estragar outro lugar? Entrevista USDV. (2025a).
O Observatório de Zonas de Sacrifício lança mão do conceito de “terricídio”, cunhado pela ativista mapuche Moira Millán, para explicar a situação em El Salto. O conceito inclui ecocídio, etnocídio e genocídio em certos territórios, implementados por meio da degradação de todas as formas de vida em nome desse progresso abstrato. As zonas de sacrifício têm seu “futuro roubado”. Para os membros da Un Salto de Vida, isso se traduz, por exemplo, na falta de acesso à escola ou à educação universitária, na impossibilidade de escolher o que querem “fazer quando crescerem”:
Vivemos um processo de maquiagem da mão de obra. Começam a ‘tecnificar’ a educação da população e a criar currículos a partir das necessidades das zonas industriais, o que impõe a nós, jovens, uma precariedade cognitiva (...) desde cedo começa-se a tecnificar, e isso gera pouca crítica, pouca absorção, uma normalização, uma ditadura da normalidade muito extensa no território. Tudo isso gerado nossa luta contra esse discurso que se tornou uma imposição em nossas vidas e nossos territórios. Entrevista USDV. (2025a).
Lopes de Souza (2020) assinala que as zonas de sacrifício são também zonas de conhecimento, onde as pessoas desenvolvem interpretações situadas e críticas de sua realidade, em contraposição ao saber hegemônico que torna invisíveis os custos do desenvolvimento. Para isso, Un Salto de Vida desenvolve uma série de estratégias que articulam o sentido e as narrativas identitárias comunitárias com o trabalho organizativo, educativo, político e o monitoramento e resgate ambiental da flora e da fauna. Seus corpos-territórios são locais de enunciação e denúncia da necropolítica ambiental. Eles fazem isso a partir de lugares de reexistência epistemológica..




Quebrar a ditadura da normalidade, organizar a raiva
A população de El Salto escutou repetidamente que seu lugar era “o motor do país”. Os moradores viam o aterro sanitário como um lugar de abundância, onde encontravam objetos que não podiam comprar: “Para muitos da minha geração, a existência de um aterro sanitário industrial significava coisas de graça, que não tínhamos acesso nas lojas ou em qualquer outro lugar. O primeiro Gatorade que bebi foi de um lixão. Ou você ia às casas e havia cartões eletrônicos que a IBM jogava fora e as pessoas colocavam como decoração, ou sacolas brilhantes como celofane que as pessoas recolhiam para dar de presente”.(Entrevista USDV, 2025a)
O aterro foi instalado sobre a ravina Los Laureles. Em 2021, conseguiram fechá-lo, o que significou que não continuaria a acumular lixo, mas não foi feita a limpeza dele: “a ravina foi toda preenchida e tem cerca de 50 ou 60 metros de altura. É mais alta do que as colinas mais próximas”. (Entrevista USDV, 2025a) Essa “normalidade” era comentada via brincadeiras entre descargas de água contaminada e espumas tóxicas de isca. Eles sabiam que cair naquela água “era febre certa”. Essa contaminação era vista como um fenômeno que não tinha uma explicação próxima:
Eles não sabiam de onde vinha, pensavam em maldições, em xamãs, mas nunca relacionavam isso à industrialização, porque o processo de industrialização era uma bondade, era dar qualidade de vida ao povo, era dar sapatos ao povo, era colocar o povo acima de muitos outros povos, era até mesmo construir uma pátria, ser nacionalmente mexicano, fazer pelos mexicanos, e esse sentimento não podia ser relacionado a um processo de morte e devastação. Entrevista USDV. (2025a).
Somente em 2024 a população de El Salto disse claramente que não queria mais a indústria. Romper com essa normalidade custou muitos anos e muito sofrimento. Em apenas uma geração, a experiência de crescer e viver no território tornou-se negativa. Foi então que começaram a investigar, a questionar, a conectar experiências com as de outras regiões do mundo na mesma situação, a reconhecer que não eram eventos isolados, mas que estavam conectados com a produção industrial:
Quando me tornei consciente, aos 19 ou 20 anos, comecei a ficar cheia de raiva, a comparar a vida dos meus pais e avós neste mesmo lugar com o que eu tinha vivido (...) foi um longo processo para romper com a ditadura da normalidade, em que sentir o cheiro de fezes e descer ao rio para brincar com a espuma fazia parte da minha infância, do meu dia a dia. Percebi que, quando ia a um rio limpo, pensava: “este não cheira a rio” (...) Há 20 anos, minha realidade se encaixou com as histórias que me contavam o tempo todo na hora das refeições, quando meus avós e os outros adultos aproveitavam para falar sobre um território vivo e como tinham que me ensinar a pescar, a pendurar o peixe, a fazer as coisas e, então, de onde vocês tiram os peixes? Do que você está falando? Entrevista USDV. (2025a).
Quando começou a recuperação do rio, eles viram que havia um dreno que conectava os despejos no rio com a zona industrial. ‘Siga o cano’. Fizemos isso materialmente no território durante anos. Você segue o cano e a dois quilômetros estava a Honda, estava a IBM, estava a Hershey, e começamos a denunciar”. Com as denúncias, vieram também a criminalização e a repressão: “eles fechavam o caminho, colocavam câmeras em uma saída de água, para nos seguir, (encontrávamos) pessoas de fora da cidade que estavam o tempo todo perto de nós, que chegavam (às assembleias) e não falavam nada. Era uma vigilância constante. E nós, em nossa total ingenuidade: ‘somos amigos, a vida é importante, o território é importante, quem vai estar contra nós quando todos queremos um rio vivo?’. Entrevista USDV. (2025a).
Se me reconheço zona de sacrifício
Un Salto de Vida começou a utilizar o conceito de zona de sacrifício depois de conhecer a experiência de Villa Inflamable, uma comunidade situada junto ao Polo Petroquímico de Dock Sud e à bacia do Riachuelo, nos arredores de Buenos Aires, na Argentina, com altos níveis de contaminação por metais pesados e outros compostos tóxicos:
A população daquela comunidade argentina falava em ‘zona de sacrifício’. Em algum momento, conversamos com eles e eles nos contaram como começaram a se identificar como uma zona de sacrifício, um lugar onde lhes são impostas formas de vida como se o território fosse zona vazia. Nós vínhamos falando sobre isso. (...) Quando chamam o seu lugar de zona de sacrifício, é como um apagamento do que você é. Por outro lado, vimos que o reconhecimento ajuda outras pessoas a se identificarem com o seu processo de luta a entender rapidamente a que você está se referindo, ou seja, tem esses dois lados. Entrevista USDV. (2025a).
Chamar El Salto de zona de sacrifício permite a eles associar a violência ambiental a processos históricos de colonização, racismo ambiental e desapropriação territorial. Aqueles que vivem nas zonas de sacrifício, com a sua luta, geram conhecimento, com a sua luta por terra, água e ar limpo para os nossos povos, geram práticas de reexistência que desafiam as imposições políticas e do capital e propõem outras formas de habitar e cuidar do mundo:
Todo esse fio de diálogo e pensamento que fomos tecendo na comunidade foi o que nos levou a nos reconhecermos. Ouvir isso, que sua terra é zona de sacrifício, de gente de fora do seu território vem com uma carga de imposição. Nós nos apropriamos disso para nos defender. Nós tomamos isso para poder acusá-los. Como se pudéssemos expor o mal, como se buscássemos a maior grosseria que existe para poder dizer: olha, isso é o que estão fazendo conosco! Isso, dessa magnitude, dessa imensidão, é o que está acontecendo em nossas vidas, e nessa magnitude queremos que resolvam. Entrevista USDV. (2025a).
Expansão da indústria eletrônica e tecnológica
As recentes tendências dos Estados Unidos em adotar o nearshoring articulam-se com o lançamento do Plano México, para projetar uma expansão do parque industrial regional para mais do dobro de seu tamanho atual. Bom lembrar que, em 2022, o governo estadunidense apresentou a estratégia do nearshoring como necessidade diante das “múltiplas ameaças” na América Latina: regimes autoritários, violações dos direitos humanos e a crescente influência do Partido Comunista Chinês. Essa política de relocalização industrial busca consolidar os Estados Unidos como um parceiro estratégico e confiável na região, sob a premissa de contribuir para o fortalecimento da democracia e do desenvolvimento. Essa narrativa, repetida durante décadas pelo vizinho do Norte, contrasta com os impactos reais, implicando em consequências opostas aos objetivos declarados para nossos territórios.
De acordo com a Associação de Industriais de El Salto, “o estudo e a análise dos problemas relacionados às atividades industriais e ações voltadas para promover o desenvolvimento na região representaram o divisor de águas para que empresas de classe mundial se estabelecessem e compartilhassem metodologia, conhecimento e tecnologia para a fabricação em massa de pneus, autopeças, veículos, motocicletas, cartões eletrônicos, computadores, telefones celulares, produtos químicos e farmacêuticos, de higiene e limpeza, ferramentas, bombas de água, vidros, chocolates, corantes, papel, caixas de papelão, suplementos alimentares e alimentos para animais de estimação, entre outros”.
O governo mexicano mantém um discurso de “modernização” que invisibiliza os custos socioambientais para as populações locais. O Plano México reforça um modelo de reindustrialização que, de acordo com as comunidades locais, intensificará a poluição, a crise hídrica e a militarização do território. Por sua vez, enquanto as indústrias eletrônicas sustentam uma narrativa de progresso, respeito ambiental e compromisso com os direitos trabalhistas, a realidade nos territórios onde se instalam revela um panorama muito diferente: doenças, precariedade e impactos profundos tanto para a população local quanto para seus próprios trabalhadores e trabalhadoras.Nesse contexto, há anos, grupos como a Coalizão de Ex-Trabalhadores e Trabalhadoras da Indústria Eletrônica Nacional (Cetien) – integrada por pessoas de Jalisco e da fronteira Norte – lutam por emprego digno e estável, denunciando os impactos da indústria tecnológica na precarização do trabalho. Algumas das experiências, reunidas na publicação “Habitar as Tecnoafecções” (2024)3, oferecem um testemunho vivo das tensões e danos que o modelo industrial vigente gera nos corpos, comunidades e territórios:
A nova tecnologia implica fazer mais com menos, com menos mão de obra, para explorar mais as mulheres (...) As empresas vieram com suas novas ideologias e o salário começou a ficar mais baixo para as mulheres, e com menos benefícios. Agora estamos muito tristes porque o salário mínimo aumentou, e nós que ganhávamos mais do que isso agora estamos com o salário mínimo. (María de Lourdes Cantor Barragan, trabalhadora da indústria tecnológica de Jalisco em entrevista em 2023).
Enquanto isso, rapidamente surgem problemas de saúde:
Você tem que carregar moldes quentes com os cartões (eletrônicos). Você não pode nem lavar as mãos, porque o calor dói, além disso, é um movimento repetitivo. Isso afetou minhas articulações e também minhas varizes. Tenho tendência a ser asmática e tenho problemas respiratórios devido aos vapores que saem a uma temperatura muito elevada, com o produto químico para impregnar os cartões e permitir que a solda líquida grude neles. (Gisela Viridiana Rosas Moreno, trabalhadora da indústria tecnológica de Jalisco, em entrevista em 2023).
Atualmente, a Honda é considerada a indústria mais relevante do corredor industrial de El Salto, operando uma fábrica em Jalisco que produz motocicletas destinadas principalmente aos mercados dos Estados Unidos e Canadá. No setor eletrônico, destacam-se empresas como Flextronics (Singapur), Jabil Circuit (EEUU), Sanmina-SCI Systems (EEUU) y Plexus Electrónica (EEUU), cujas atividades se concentram na montagem de placas, processadores e outros componentes de comunicação. Além disso, o corredor abriga empresas mundialmente conhecidas como IBM, Hitachi, Mercado Libre e Amazon. No início de 2025,El Salto começou a se posicionar como um novo polo para a indústria aeroespacial, com a participação de empresas como Aptiv (Irlanda) e Vesta (México).

Plano México e projeções de futuro
O Plano México (2025) é um instrumento de estratégia governamental que busca consolidar o México como um centro global de produção tecnológica, por meio da expansão industrial e da atração de investimentos estrangeiros, consolidando o país como um destino-chave para o nearshoring. Em maio de 2025, ainda só temos acesso a uma primeira versão preliminar, inexistindo um documento completo com os detalhes do plano. No entanto, é possível traçar um esboço se reunirmos as informações compartilhadas por diferentes meios de comunicação e anúncios governamentais, apresentações nas mañaneras (coletivas de imprensa diárias da presidenta mexicana) e as metas, disponíveis no site governamental. Essa soma de informações revela a intenção de acelerar a industrialização do país por meio de “polos de bem-estar” que, na compreensão dos membros do Observatório de Zonas de Sacrifício, nada mais são do que territórios sacrificáveis.
Entre os setores-chave identificados para promover o desenvolvimento econômico e atrair investimentos estão as tecnologias da informação e a eletrônica. Uma das metas menciona “Aumentar em 15% o conteúdo nacional nas cadeias de valor globais nos setores: automotivo, aeroespacial, eletrônico, semicondutores, farmacêutico, químico, entre outros”, orientados em sua grande maioria para a exportação. Em fevereiro de 2025, a presidente Claudia Sheinbaum anunciou a criação do Centro Nacional de Design de Semicondutores Kutsari, que projeta seus primeiros centros em Puebla, Jalisco e Sonora, pretendendo produzir chips para a indústria automotiva, de eletrodomésticos e equipamentos médicos, entre outros dispositivos (Presidência do México, 2025). Embora não haja menção a empresas específicas a serem atraídas, já existem conversações com a Netflix e a Amazon Web Services (AWS), que anunciou investimentos milionários para estabelecer centros de dados em Querétaro.
Para a Coordenação de Crescimento e Desenvolvimento Econômico do Governo de Jalisco, esse plano se materializaria em projetos como o Jalisco Tech Hub Act que, com uma promessa de investimentos de US$ 724 milhões e a criação de 120 mil empregos formais até 2030, transformaria o estado em um polo de inovação, talento e alta tecnologia para o México e a América Latina:
Jalisco não tem sido alheio ao desenvolvimento de setores tecnológicos. A história do Vale do Silício do México começou no início dos anos 60, com a chegada da indústria eletrônica ao estado, com empresas como Siemens, Motorola e Burroughs (...) hoje, o Vale do Silício do México conta com mais de 600 empresas de alta tecnologia e mais de 300 empresas de software e serviços que, com o apoio de universidades, instituições e centros de pesquisa, formam um ecossistema maduro, articulado e cheio de potencial. (Governo de Jalisco, 2024)
Com o aumento das tensões no comércio de bens de consumo eletrônicos entre os Estados Unidos e a China, aposta-se que haverá um (novo) “boom” da indústria eletrônica no município:
Um estudo (de várias indústrias) apresentou três locais prováveis no mundo para os quais se poderia deslocar o que se produz na China (...) o local que tinha melhores condições, não só de infraestrutura, mas também de menor custo de mão de obra, e de ‘diplomacia política’ é El Salto.. Entrevista USDV. (2025a).
Entre as estratégias para apoiar o projeto de expansão está a implementação de políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento, a reconversão e a vinculação de talentos especializados para atender à demanda de mão de obra das empresas do setor industrial e de alta tecnologia. Da perspectiva de quem recebe essas políticas públicas, a visão é diferente. A precarização do trabalho acompanha o processo pelo qual o sistema educacional foi reestruturado para gerar “competências técnicas” de acordo com as necessidades das fábricas, reduzindo as possibilidades de mobilidade social e pensamento crítico.
Ignorando as exigências das populações locais e sem medir os impactos socioambientais dessa nova aceleração industrial, o Plano México promete 100 novos parques industriais para setores estratégicos, entre os quais se encontram a tecnologia da informação, a eletrônica e o aeroespacial. No caso específico de El Salto, pretende-se consolidá-lo como um polo estratégico para a manufatura avançada e a logística. Não por acaso, no último sexênio (2018-2024), o uso do solo industrial na localidade duplicou e, de acordo com membros da Un Salto de Vida, está prevista uma ampliação das zonas industriais em aproximadamente 500% na zona Sudeste da cidade de Guadalajara.
Impactos diretos
Desapropriação (territorial)
A expansão da indústria eletrônica agravou impactos negativos sobre o meio ambiente: poluição da água, degradação do solo, deterioração da qualidade do ar e perda acelerada da biodiversidade, bem como o deslocamento forçado de comunidades.
O que mais? Bem, para o rio Santiago há oito megaprojetos energéticos. Estamos aqui contra a termelétrica , mas sobre o rio são oito. De diferentes naturezas. (...) Em Jocotepec há a termelétrica Guadalajara. Depois vem Juanacatlán, com a termelétrica La Charrería; El Salto, com a termelétrica de ciclo combinado La Capilla; Zapotlanejo, com a termelétrica Las Cuchillas, e depois uma geotérmica em San Lorenzo, a geotérmica em Iscatán, e depois, mais abaixo, a hidrelétrica San Cristóbal de la Barranca, a hidrelétrica Isla Ocán del Río e, em seguida, Canal Centenario. Isso é o que está planejado e sendo realizado. Uma está concluída, algumas estão em construção, outras estão paralisadas. (Entrevista USDV, 2025a).
Desde o início do século XIX até hoje, foram construídas 21 barragens no rio, sete das quais já estão em funcionamento e geram energia para as zonas industriais e agroindustriais. O enorme crescimento das obras energéticas está ligado a uma necessidade crescente de eletricidade para sustentar as (novas) plantas industriais.
Militarização (controle territorial)
A militarização acompanhou a expansão industrial em El Salto. Desde a década de 1990, com a chegada da Pemex (empresa estatal de petróleo do México), foram instaladas bases militares na cidade. Nos últimos anos, somou-se a presença da Guarda Nacional e a criação de uma polícia industrial4 em 2023, uma resposta do governo às reclamações do setor industrial pelo alto nível de violência e assédio do crime organizado.
Se você pensar no triângulo do território, há uma (base da Guarda Nacional) em direção à Alameda e dois municípios (...) E também há o aeroporto. Ou seja, dentro dos limites municipais estão o aeroporto, a prisão de alta segurança, o estoque concentrado de gasolina para o Oeste do México. Bem, toda a infraestrutura que a indústria requer está distribuída ali. O mesmo vale para as torres de comunicação, as torres da polícia, as antenas, as infraestruturas. (...) Depois da forte militarização, os militares ficam muito tempo nas ruas e usam helicópteros. Foi quando se criou o cemitério forense. O cemitério de toda a região fica aqui, a alguns quarteirões, e para lá são levados todos os corpos não identificados do Estado, bem, de todos os lugares, então há muitas caravanas de (mães) em busca de seus filhos, de todo o país. Entrevista USDV. (2025b).
Ademais, são relatados constantes bloqueios, inibições de sinal de comunicação e aumento da vigilância, afetando a vida cotidiana das comunidades:
Há cerca de um mês, o que eles fazem é bloquear todos os sinais... não há Oxxo, nem caixas eletrônicos, nem banco, nem telefone celular, nem telefone fixo, nem internet, como se toda a cidade ficasse desconectada. (…) Em setembro do ano passado, isso coincidiu com bloqueios nas estradas, com narcobloqueios que queimam, tomam, incendiam... toda a cidade ficou desconectada, nada funcionava, nem nos arredores, e quando o sinal voltou, eles tinham matado o prefeito, tinham tomado tanques artesanais, tinham feito um tipo de barreira. (Entrevista USDV, 2025b)
Impactos sobre mulheres e meninas
As mulheres suportam a maior carga de cuidados requeridos pelo aumento de doenças renais e cânceres associados à poluição. Também na organização comunitária e na resistência territorial. Da mesma forma, os impactos hormonais em meninas e adolescentes são alarmantes, incluindo puberdade precoce, endometriose e dificuldades reprodutivas:
Há muitos disruptores hormonais que são como contaminantes que podem alterar o ciclo menstrual, podem hormonizar a pessoa de maneira diferente. Não sei como funcionam, mas algo que nos diziam nas escolas era que meninas de sete, oito anos começavam a menstruar. Então, há uma grande alteração do ciclo menstrual por causa de todos esses contaminantes. (Entrevista USDV, 2025b)
Os crescentes problemas de saúde não foram amplamente divulgados até fins dos anos 2000, quando os habitantes da região começaram a reconhecer que cada um tinha pelo menos uma pessoa gravemente doente em sua família:
Não era apenas um problema de cheiro de fezes e de mosquitos que não davam trégua, mas havia uma doença na população. Naquela época, o governador chegou a dizer que não sabia que pecado o povo havia cometido para ter tantos problemas de saúde e ambientais. (Entrevista USDV, 2025b)
É irônico que o governo de Jalisco faça referência aos pecados cometidos pelos moradores, tendo ocultado informações valiosas sobre contaminantes altamente cancerígenos:
Uma pesquisadora da Universidade Autônoma de San Luís Potosí nos procurou para nos entregar os resultados de um estudo realizado em 2009, financiado pelo Estado de Jalisco e pela Comissão Estadual de Água de Jalisco. O estudo foi mantido em segredo durante 10 anos pelo governo do Estado. Encontramos níveis muito elevados de mercúrio, arsênico, cádmio, chumbo e alguns contaminantes orgânicos de alto risco, como benzeno e compostos orgânicos persistentes. Foram analisadas amostras de sangue e urina de 330 meninas e meninos entre 6 e 12 anos, dos municípios de Tonalá, El Salto e Juanacatlán. (Periodismo de lo posible, 2025)
A carga de trabalho com cuidados das mulheres aumenta ainda mais. Não apenas porque elas se tornam responsáveis por acompanhar as pessoas doentes, mas porque, em muitas ocasiões, os homens que não estão sofrendo esses impactos abandonam o lar. Não são situações isoladas. E por isso, algumas decidem se organizar, como as Guerreras de la 180, um grupo de mães cujos filhos são atendidos na Clínica 180 e que se apoiam mutuamente de várias maneiras:
Então elas se dividem, uma vai reservar os lugares, outra vai fazer as compras, elas se revezam na lavagem das roupas e trocam entre si... e também [trocam] medicamentos, porque nem todos têm acesso aos remédios. Então, para quem recebe, ela diz: “Bem, eu tenho para 30 dias e consigo dar para duas ou três pessoas e, quando chegar a sua vez, você me devolve como um empréstimo de medicamentos... emprestando as bolsas de diálise e usando um único transporte para levar quatro ou cinco doentes. (Entrevista USDV, 2025b)
A sabedoria do fazer: construir resistências, cultivar a vida
O coletivo Un Salto de Vida estão nasceu do vínculo afetivo com o território. As pessoas se juntam, criam-se articulações, propõem-se alianças, realizam-se ações pequenas e grandes. A vida ganha forma. Uma parte essencial desse caminho é a recuperação da identidade territorial e da memória histórica comunitária por meio de uma pesquisa baseada em testemunhos e também em arquivos, gerando laços de reconexão com seus ancestrais, formas de vida e reconhecimento do que continua vivo, por exemplo, em suas formas de alimentação.
O processo organizativo
A história organizacional do coletivo não foi linear, foi respondendo às situações que se apresentavam e às pessoas ou grupos que se aproximavam:
Foram muitos anos. Sangue e suor. Uma das coisas que mais custou foi a abertura que tivemos coletivamente para tantas pessoas que vieram (...) de todas essas histórias que nos tornaram mais resistentes é que criamos pequenas regras para podermos nos relacionar de uma maneira mais clara a partir de nós mesmas, cuidando um pouco mais de nós mesmas. (Entrevista USDV, 2025b)
A raiva pela situação socioambiental e de saúde que viviam impulsionou a organização a documentar a realidade vivida. Durante muitos anos, os membros do coletivo percorreram o território registrando, fotografando, relatando os impactos da industrialização. Com isso, elaboravam ações de denúncia e recursos.
Uma das virtudes do Salto de Vida é que temos perfis muito variados. Então havia algumas que diziam não, por causa do institucional, não, melhor isso, melhor aquilo e não, vamos fazer isso. Aqui no coletivo há duas regras: uma é que não há regras, e a outra é que quem propõe dispõe de seu tempo, de sua vida para fazer as coisas. (Entrevista USDV, 2025b)
Em outros anos, um membro do coletivo teve a ideia de levar um alto-falante para a praça pública e habilitá-lo para que as pessoas dissessem o que quisessem. Essa prática levou ao desenvolvimento de assembleias comunitárias: “Passamos um ano nas assembleias semanais, começamos com quatro ou cinco pessoas e terminamos com cerca de quatro mil pessoas na assembleia”. Daí surgiu uma lista de reivindicações que ainda é um documento válido. Entre suas exigências para o território estão a atenção imediata à saúde e a declaração de emergência sanitária e ambiental, a restauração, recuperação e saneamento do rio Santiago e a defesa das colinas, além da proibição da indústria.
Hoje, o número de pessoas que integram o coletivo “depende da ação” que realizam. Há quem se junte diretamente a cada reunião, mas também há quem apoie à distância e, mesmo assim, se sinta parte da coletividade: “Algo que temos aprendido é, como diz Atahualpa, canta pa’uno como pa’cien (canta para um, canta para cem). Fazemos muito isso de falar um de cada vez. O que também nos ajudou a nos manter por tanto tempo é que as pessoas acreditam (...) É uma rede de confiança, que permitiu que o grupo se mantivesse e avançasse”.
Uma única linha de trabalho: o rio
Ter um rio limpo é o interesse comum. E para voltar a ter um rio limpo é necessário pensar em todas as partes do seu território, conhecê-las, pensar nas suas montanhas, nas suas bacias hidrográficas, nos seus solos e sedimentos, nos seus animais. Começaram a percorrer o rio pelos seus afluentes mais limpos, a cartografar os seus riachos e córregos, a investigar os níveis históricos das cotas da água.
O rio é pensado com a sua bacia atmosférica: “Como há muitas emissões de contaminantes e há contaminantes em evaporação, também há um impacto no ar. Portanto, o ar é um elemento que também precisa estar limpo e que não se separa da água. Por isso, nosso lema sempre foi terra, água e ar limpos para nossos povos. Porque é como esse conjunto existe”. A recuperação da bacia também implica fornecer alimentos em abundância. Assim nasceu o viveiro para o plantio de goiaba, manga e outras árvores frutíferas:
Começamos a dizer o que é saneamento. A primeira coisa é parar a contaminação. Como você vai limpar se continua contaminando? A partir do saneamento, tem que haver uma restauração, uma recuperação, uma conservação. Ou seja, são processos, e cada palavra que impusemos ao Estado tem que mudar sua lógica de pensamento sobre os territórios. É algo que nós, como mulheres, levantamos. ‘Não é isso, é isso que tem que ser feito...’ Começamos a apontar que não era suficiente apenas declarar uma zona de emergência sanitária e ambiental, mas impedir que continuassem a decidir como se fosse uma zona de sacrifício. (Entrevista USDV, 2025b)
Estratégias de fortalecimento e ação
O fortalecimento comunitário se materializa em diversas ações. A defesa territorial tem suas raízes na memória coletiva, avança com práticas de reflorestamento comunitário e viveiros urbanos e se aprofunda com campanhas de educação ambiental em escolas locais, utilizando ferramentas lúdicas e pedagógicas para sensibilizar crianças e jovens sobre a problemática ambiental do Rio Santiago.
Com o passar dos anos, eles impulsionaram uma sistematização para registrar de forma ordenada as diferentes áreas que documentam. Por exemplo, o monitoramento comunitário da fauna e das aves, para o qual realizam observações e registros sistemáticos de espécies animais e vegetais locais, que inclui aves migratórias e residentes. Essas atividades são realizadas em colaboração com aliados científicos. Além disso, impulsionaram um laboratório popular de monitoramento socioambiental que permite aos habitantes monitorar a qualidade da água, do ar e do solo em seu entorno. Este espaço combina conhecimentos científicos e locais para gerar dados próprios que baseiam suas demandas de justiça ambiental. As pesquisas comunitárias têm sustentado práticas que permitem reconhecer os odores ofensivos: “São aqueles que se intrometem de forma violenta em nosso cotidiano, prejudicando nossa saúde física, mental e emocional, impedindo nossa convivência saudável”. Por meio de folhetos e de um formulário online que os “voluntários do olfato” podem preencher, o monitoramento de odores se desenvolve para construir um mapa. “Com essa ferramenta, poderemos localizar os pontos de emissão do que nos prejudica e propor soluções para melhorar a vida nos lugares onde vivemos”. (Entrevista USDV, 2025b)
Uma de suas estratégias transversais é a articulação com redes e outros processos territoriais em nível local, regional e internacional, para trocar experiências, conhecimentos e estratégias na defesa do território e da justiça ambiental: “Tem a ver com formar parcerias, como outros povos, outras comunidades, outras redes, com as quais formamos espaços, sonhos, esperanças, ações. Fortalecemos os espaços uns dos outros e, nesse ir e vir, como uma única região, um único território”. A ligação com a academia e as organizações sociais é “mais pensada”, “mais ordenada”:
Todas essas relações, vinculações devem ser pertinentes e estar a serviço do benefício da comunidade, e não do interesse individual ou do grupo, nem devem ser alheias aos objetivos da luta. Todo processo realizado com eles deve ser acessível, todas as informações geradas ao longo do vínculo devem ser abertas, disponíveis, ou seja, como dizemos, em co-construção, construídas em conjunto, se possível também nas formas de fazer, na metodologia de fazer e pensar, de como tomar decisões e como posicioná-las politicamente. Pedimos que seja recíproco. (Entrevista USDV, 2025b)
Além da incidência política e das ações de litígio estratégico por meio de ações judiciais, eles realizam campanhas de denúncia, documentários e vídeos, infográficos, folhetos e outros materiais de sensibilização, que se somam à mobilização com marchas, protestos e coletivas de imprensa. Entre as ações de incidência social mais impactantes está o Tour do Horror, um passeio guiado por áreas contaminadas do Rio Santiago e seus arredores, a grande cachoeira e o viveiro comunitário. Este passeio é uma ferramenta pedagógica e política poderosa. Ele nos permite vivenciar tanto a gravidade da situação quanto a força da resistência.
Entre suas estratégias mais recentes está a segurança e o acompanhamento comunitário, que se tornaram necessários devido ao aumento da criminalização, do assédio e da insegurança.

…Saída
As experiências de vida no “Vale do Silício mexicano” evidenciam de forma brutal os impactos de um modelo de desenvolvimento baseado na expansão industrial e tecnológica. Diante da narrativa oficial baseada repetidamente no “progresso” e na “modernização”, jornalistas e acadêmicos comprometidos, bem como organizações da sociedade civil e, fundamentalmente, a população local, organizada junto com o coletivo Un Salto de Vida, se levantam com raiva para reinventar permanentemente formas de articular resistências na defesa dos territórios e de uma vida digna. Sempre a partir de estratégias que falam de cuidados e identidade coletiva, de vínculos com a ancestralidade e com o tecido comunitário, em sua relação com os ambientes naturais e à água, por meio de litígios e ações diretas pacíficas.
Não se trata de mudar a matriz produtiva ou energética do país para nos acomodarmos às novas lógicas do mesmo crescimento ilimitado. Trata-se de dar espaço a uma mudança de matriz social, de pensamento e ação, que coloca visa outras formas de ser e fazer, também na produção eletrônica e nas tecnologias digitais. O capitalismo não aceita respostas negativas e de rejeição. Ele se impõe com ou sem consentimento. Talvez por isso a defesa dos processos coletivos e da propriedade social da terra sejam fundamentais como estratégias anticapitalistas.
Frente ao Plano México, os desafios são enormes: frear a industrialização e a “normalização” da degradação das zonas, seres humanos e não humanos considerados sacrificáveis; frear a precarização social, combater a militarização, exigir a valorização de outras formas econômicas e de vida que não impliquem o sacrifício de muitos para o benefício de poucos, que são cada vez menos. Nesse sentido, a articulação entre direitos digitais, ambientais e humanos é urgente. Mas como?
Somos solidários às formas de esperança sustentadas no trilhar outras formas de vida, uma esperança politizada que se relaciona com as resistências diante do que parece ser um destino inevitável. Uma esperança que não teme nomear as desigualdades estruturais históricas e presentes e evidenciar responsabilidades diferenciadas. Uma esperança que constrói e não deixa de imaginar um amanhã em que a felicidade, a vida e sua dignidade retornem.Se o futuro não tem futuro, o presente se torna desnecessário. Layla Martinez diz em seu livro Utopía no es una Isla (A utopia não é uma ilha): “Se apenas imaginarmos um futuro pior, o presente nos parecerá admissível e não lutaremos para mudar as coisas”. Estamos para reflorestar a imaginação e semear as ações do presente que nos contagiem com essas esperanças politizadas. “Não queremos nada, apenas viver. Temos esse direito. E este território terá que mudar”.
Notas
1 ^ O Plano México é uma iniciativa do governo liderado por Claudia Sheinbaum, que foi apresentada em janeiro de 2025. Seu objetivo é posicionar a economia mexicana entre as dez maiores do mundo. De acordo com as informações disponíveis até o momento, este plano tem como propósito fomentar a produção de 50% dos bens consumidos no mercado interno, estabelecer 100 parques industriais em diversas regiões do país e posicionar o México entre os cinco principais destinos turísticos do mundo.
2 ^ O nearshoring é uma estratégia empresarial e comercial que transfere processos produtivos para países próximos, a fim de reduzir custos logísticos, prazos de entrega e dependência de fornecedores distantes, com o objetivo de mitigar riscos decorrentes de interrupções nas cadeias de abastecimento globais. Nos locais onde se instala, costuma intensificar dinâmicas extrativistas, aumentando a precariedade laboral e as disputas territoriais.
3 ^ O projeto Tecnoafecciones propõe reimaginar as tecnologias a partir de uma perspectiva feminista, descolonial e situada, com o objetivo de gerar pensamento-ação em torno de nossas relações com e através delas. Considera a geopolítica tecnológica, os processos associados ao desenvolvimento tecnológico e os afetos que estão entrelaçados em nossas relações mediadas sociotecnicamente.
4 ^ De acordo com um comunicado das comunidades organizadas de El Salto e Juanacatlán, citado pelo meio independente Somos el Medio, o projeto termoelétrico El Salto I é promovido pela empresa Ad Astra Energía do Grupo VAZ, com vínculos com as corporações transnacionais Anschutz Corporation (hidrocarbonetos) e Sprint Corporation (telecomunicações). “O projeto propõe operar com uma capacidade bruta de 552,32 megawatts, utilizando gás metano extraído por fraturamento hidráulico no Texas, transportado pelo gasoduto Villa de Reyes–Aguascalientes–Guadalajara. A usina seria instalada a menos de um quilômetro da subestação elétrica Atequiza e perto de empresas de alto risco como Quimikao, Mexichem, ZF Suspensiones, RECAL (Aceros Corey) e Corporación de Occidente (antiga Euzkadi).” (Marlo, 2025 para Somos el Medio).
5 ^ Corpo de segurança único no país, projetado especificamente para proteger as empresas do corredor industrial e proteger tanto seus trabalhadores quanto a população civil das áreas vizinhas. Foi desenvolvido em colaboração entre a Prefeitura de El Salto e a Associação de Industriais de El Salto (AISAC).
6 ^ O cemitério forense de El Salto é um espaço destinado ao enterro de corpos não identificados e não reclamados por seus familiares. Funciona como uma extensão do serviço médico forense. Atualmente, enfrenta uma grave crise de saturação e é visto como um indicador crítico das deficiências do sistema forense e de atendimento a pessoas desaparecidas.
Referências
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